Não sei bem o motivo.
Acordei com uma falta, com um vazio. Vontade de abraçar a Scarlett e beijá-la. Beijo na boca. Daqueles de lábios, não o de língua. Daqueles que pede um abraço forte como acompanhamento e que exige entrega e amor. Dos que te levam a fechar os olhos e cheirar nucas, cabelos.
...
Ontem eu vi um louva-deus na garagem de casa. Lindo. Você sabia que em algumas espécies de louva-a-deus, a fêmea precisa comer a cabeça do macho que está copulando com ela? Isso porque, dentro da cabeça do macho, lá no cérebro, existe um inibidor de ejaculação. Então a fêmea precisa acabar com esse inibidor, se ela quiser ter seus filhotes. Então ela come a cabeça do macho, o inibidor deixa de funcionar e o macho ejacula, fecundando os óvulos. Tudo isso acontece muito rápido. Muitas vezes a fêmea nem come o corpinho dele, mas ela guarda pra quando os filhotinhos nascerem já terem alimento disponível.
...
- Você tá meio distante. Cansada?
- Tô pensando.
- No quê?
- Na minha vida. No meu trabalho. Em como eu tenho que ser eu, e outra. Em como eu era, e como eu sou. Estar sendo. Ter sido.
...
Faz duas semanas que não nos vemos. Incrível como namoradas imaginárias trabalham tanto! Testes, filmagens, fotos. Agenda cheia. Coisa de atriz, né? ... Ah, merda, quem eu tô querendo enganar. Acho que a culpa é toda minha. Eu me acomodei na relação. A felicidade dela deixou de ser uma meta pra mim e passou a ser somente mais um pressuposto que me confortava quando a preguiça de me esforçar batia.
O telefone toca.
- Alô.
- Bill?
- Eu mesmo. Quem é?
- É a Mirabelle. Tô ligando pra saber da Scarlett, faz tempo que ela não aparece nas sessões. Como ela é uma projeção da sua mente, resolvi falar com vc pra ver se sabe de algo.
- Eu acho que eu fodi com tudo, Mi.
- Como assim, tá falando do quê?
- Eu acho que no fundo eu comecei a acalentar uns desejos de ter uma namorada de verdade, sabe, umas idéias de que talvez minha vida com ela não fosse plena, completa.
- Mas isso é super normal, Bill. Pq vc acha que esses pensamentos tem ligação com o sumiço dela?
- Pq ela me conhece. Melhor do que qualquer outro, mais até do que eu mesmo. E eu sei que ela nunca aceitaria ser um peso na minha vida. Acho que ela sacou esses meus pensamentos e se retirou discretamente.
- Já tentou entrar em contato com ela?
- Não. Algo me diz que ela não quer ser encontrada.
- Ah, me poupe desse drama, por favor.
- Mas que que eu posso fazer?!
- Levanta essa bunda da cadeira e vai atrás da sua mulher, oras!
- Unh... talvez vc tenha razão.
- Tá, então pede pra ela me ligar assim que encontrá-la, ok?
- Tá certo Mi, falo sim. Beijos.
- Beijos
Mentalizo minha galega ao meu lado. Seus límpidos olhos verde-claros, seus cabelos amarelos ondulados e sua boca vermelha, convidativa. Sua discreta pinta na bochecha direita, os bracinhos finos, os dedos longos. O cheiro de eterno despertar, a respiração forte. Os pezinhos hábeis e macios, a gordurinha sobressalente nos quadris. Ok, ela aparece ao meu lado, no sofá.
- Senti sua falta, Preto.
- E eu a sua.
- Tá afim de trepar?
- Tô.
...
- Sabe o que seria sensacional?
- O quê?
- Sair por aí enchendo a cara e visitando alguns amigos.
- Sério? Achei que vc tivesse numas de filminho e lazanha.
- Ah, cansei. Li muito Hilda Hilst hoje.
- E daí?
- E daí que me dá uma certa angústia, um desconforto em ficar
na minha casca.
- Não entendi.
- Talvez tenha a ver com o fato dela alargar tanto o universo
das palavras, da própria linguagem. Talvez eu veja nisso um certo alargamento
das possibilidades que a vida oferece, sabe. É como se explodisse uma bomba de tesão pela
vida dentro de mim, entende. É tipo um fogo na rabo.
- É um tanto vago, mas eu acho que entendi.
- Os sentimentos vastos não tem nome.
- Justo. E daí sair vai resolver isso?
- Se eu ficar em casa vou morrer sufocada.
- Tá afim de beber um vinho? Era isso que a Hilda mais bebia.
- Acho ótimo. Vou trocar de roupa e a gente sai.
Para onde vão os trens meu pai?Para Mahal, Tamí, para Camirí, espaços no mapa, e depois o pai ria: também pra lugar algum meu filho, tu podes ir e ainda que se mova o trem tu não te moves de ti.
- Gostei daquele vinho que a gente tomou quinta passada.
- Aquele do bistrô? Bom mesmo.
- Qual que era o nome?
- Ah, minha memória é uma merda, vc sabe disso. Só guardo nome
de diretores e filmes, não sou tão sofisticado a ponto de memorizar nome de
vinho.
- Vamos pro Pão então?
- Bóra.
A noite acaba de cair, o clima é ameno com lufadas gentis de
vento. Caminhamos um tanto até o mercado, enquanto discutíamos quem era o
melhor, Tarkovski ou o Bergman (sabíamos que no fim John Carpenter sempre seria
considerado o melhor).
- E aí, qual vc quer levar?
- Que tal esse chileno?
- Ótimo. Vou ali pegar uns salgadinhos. Vai me esperando na
fila.
...
- Vamos dar um pulo no Ari e na Renata?
- Pode ser, desde que eu consiga ficar bêbada antes de chegar.
Seguimos o rumo entre passos, goles e mais discussão, desta vez sobre a forma horrível com que o Bergman tratava a Liv Ullmann.